Pensar sobre a morte serve para repensar a vida?

A morte, como diz Gilberto Gil, é diferente do morrer. Na canção Não tenha medo da morte (2003), Gil fala diretamente sobre esse tema: “não tenha medo da morte, tenha medo de não viver (.) ...a morte é depois de mim...morrer ainda é aqui, na vida, no sol, no ar...”.

May Guimarães Ferreira

A morte, como diz Gilberto Gil, é diferente do morrer. Na canção Não tenha medo da morte (2003), Gil fala diretamente sobre esse tema: “não tenha medo da morte, tenha medo de não viver (.) ...a morte é depois de mim...morrer ainda é aqui, na vida, no sol, no ar...”.

Se pensarmos a passagem da luz solar na Terra como uma metáfora do transcurso da vida, podemos imaginar o nascer como o amanhecer iluminado. O meio-dia como a etapa de vida adulta e produtiva. O cair da tarde podemos pensar como sendo o processo de envelhecimento, e a noite como a chegada da hora final. Para viver bem a cada dia, é preciso aceitar as mudanças, os ciclos com os ganhos e as perdas inerentes a cada etapa da vida. Quando estamos no processo de finalização da vida, por motivos diversos, não temos a visão de que era essa a única certeza que podíamos ter tido, desde sempre, desde o começo da existência.

Ao viver, deixo a cada dia uma pegada para a morte que virá, a qualquer hora incerta, ainda que eu não queira morrer. A morte contraria todas as ilusões da vida mesmo que eu não tenho desejo de morrer. Para viver sem o morrer em vida é necessário viver o sol, o ar, o mar, a terra, o luar, respirar bem fundo no momento presente e saber que a vida é só essa mesmo e única. Não há tempo de vida a perder com banalidade. Cada minuto, segundo ou hora desperdiçada com “barulho” para nada e por nada, é vida perdida.

A cultura se diferencia na maneira de aceitar o fim da vida e a morte. Os humanos criaram rituais diversos para contemplar o término definitivo de pessoas com as quais criaram vínculos afetivos. A forma de vivenciar o luto pela perda de pessoas próximas pode se tornar uma sobrecarga emocional devastadora, reconfortante ou inaceitável. Múltiplas podem ser as consequências da morte de pessoas próximas como pai, mãe, filhos/as, irmão/ã, parentes, amigos/as, vizinhos/as, conhecidos/as com os quais há identificação significativa.

Com a chegada da morte se encerra a luta entre “Eros” e “Thanatos”, para quem morre. No entanto, para quem fica a luta para vivificar “Eros” é uma alternativa possível de ressignificação da vida, dos afetos, dos vínculos e do trabalho de manter a vida plenamente. Nesses processos pode surgir a ideia de que quanto menos trabalharmos e consumirmos o supérfluo, quanto menos produzirmos lixo que destrói o planeta, mais talvez seremos felizes, equilibrados/as e viveremos sentindo alegria e plenitude.

Elefantes costumam tocar, vigiar e cobrir o corpo dos mortos da sua espécie demonstrando comportamento de respeito, aprendizado e dor. Criar rituais e símbolos de luto pelas perdas é uma maneira de iniciar a elaboração do luto e separação que até os animais vivenciam. Para a espécie humana, a perda física de pessoas queridas, da convivência, da relação presencial próxima promove a reconexão aos aspectos significativos simbólicos que construíram os vínculos em vida. Muitas vezes a morte física suscita o surgimento de aspectos de ligação simbólicas que antes não foram alcançados por isso, a cada perda, uma nova conquista pode ser vivenciada. Perder faz parte do processo vital de movimento e transformação. Assim, as ilusões da imortalidade que aplaudem os aspectos do ter sem ser, bem como as feridas narcísicas da onipotência dos humanos podem suscitar transformações individuais pautadas no desejo de construir uma vida mais significativa e saudável em cada etapa vivida. Se pararmos para imaginar que podemos morrer amanhã, poderíamos valorizar cada segundo do dia de hoje, nossa história de vida e aceitar as perdas inevitáveis.

A letra da canção Flor Bailarina, de Guiomar Garcia, interpretada por Jussara Silveira revela a importância do vínculo amoroso e dos afetos que nos mantém vivos: “Só morre quem nega na vida o amor. A mim, já me alegra colher uma flor”.

Profa. Dra. May Guimarães Ferreira é psicóloga, psicanalista e arteterapeuta

guimaraesferreiramay1@gmail.com