Por que sofremos tanto?

A maneira como trabalhamos e consumimos está profundamente conectada à percepção que temos de nós mesmos e à nossa forma de sofrimento. A crise psíquica contemporânea se expressa por meio de depressão, ansiedade, burnout e excesso de trabalho, fenômenos agravados pelos efeitos sociais da pandemia, como isolamento, destruição de laços sociais e luto.

Darlene Menconi

Um terço dos brasileiros sofre de insônia, mais de 16 milhões de depressão: a crise de saúde mental revela o esgotamento do modelo econômico atual e destaca a urgência de fortalecer relações sociais e novas práticas de cuidado.

(Ministério da Previdência Social)


A maneira como trabalhamos e consumimos está profundamente conectada à percepção que temos de nós mesmos e à nossa forma de sofrimento. A crise psíquica contemporânea se expressa por meio de depressão, ansiedade, burnout e excesso de trabalho, fenômenos agravados pelos efeitos sociais da pandemia, como isolamento, destruição de laços sociais e luto.

Há uma evolução do sofrimento ao longo do tempo e do modelo socioeconômico vigente. No período pós-guerra, o sofrimento estava relacionado a conflitos, e a psicanálise buscava compreender a subjetividade a partir das situações de tensão, divisão e dissociação. No liberalismo, com o estado de bem-estar social, houve um deslocamento para conflitos internos e o narcisismo. Foi a chamada era do cinismo, que se manifestava pela busca por prazeres e por dissociar vida pública e privada. Práticas de cuidado com a saúde, como academia, exames de rotina e emagrecimento estiveram em alta entre os anos 1990 e 2000, mas não havia o discurso sobre cuidado com as emoções — isso era questão de quem tinha doença ou falta de sorte. A tecnologia permitiu que levássemos uma vida nômade, com identidades flexíveis e a possibilidade de exercer várias carreiras em uma mesma trajetória profissional.

A partir da virada do milênio, emergiu a cultura dos super-heróis, que se contrapõem aos ninguéns, os matáveis, os irrelevantes, os não adaptáveis, os não heróis. Isso prejudicou dois sentimentos essenciais para a sobrevivência psíquica, segundo o psicanalista Christian Dunker, do Instituto de Estudos Avançados da USP. Em primeiro lugar, a possibilidade de se ter uma vida digna sem ser excepcional, ou uma super pessoa. É possível, sim! Em segundo lugar, a capacidade de compartilhar intimidades, dividir incertezas, dúvidas e inadequações em relações de confiança e lealdade. Vivemos com medo de que nossas vulnerabilidades sejam usadas contra nós, expostas, intensificando ainda mais o sofrimento individual e a solidão.

A inadequação alimenta esse quadro, criando a impressão de que por mais que se faça, não é suficiente e que você ainda não chegou em sua melhor versão.

A promessa de uma vida boa para quem cumpre as regras foi abalada pelo neoliberalismo e pelas tecnologias digitais. Emergiram daí insegurança no emprego, na comunidade, na família, sensação de não pertencimento, ou inadequação, e solidão, afetos centrais para a crise psíquica contemporânea, evidenciando a necessidade de reconstrução de laços comunitários e criação de formas de acolhimento da diversidade de experiências humanas.

Antes visto como questão de foro individual, o sofrimento hoje se mostra uma questão coletiva. Dunker argumenta que os espaços de escuta e luto foram ocupados por novas formas de religiosidade, especialmente com a promessa de cura do sofrimento. Daí a emergência do neopentecostalismo de terceira geração, que alcança as periferias aonde o Estado não chega.

Somos uma sociedade que abreviou o luto, sobretudo o coletivo, diz o psicanalista. Mas há como aliviar a dor, para isso é necessário reconhecer o sofrimento, promover espaços de escuta, valorizar a educação literária, fortalecer a cultura. Só assim poderemos nos reconectar com modos de vida mais saudáveis e solidários. Portanto, o que está em xeque é a transformação do atual modelo socioeconômico baseado no curto prazo, no individualismo, no consumismo e no crescimento infinito, que nos adoeceu.


Darlene Menconi é jornalista, pesquisadora em Cidades Inteligentes e Sustentáveis e presidente da Associação Profissão Jornalista (APJor)